sexta-feira

não quero falar sobre os quadros de rembrandt que viste na galeria parisiense. podes até falar sobre isso, mas pouco me importa. a vida é demasiado pouca para essa merda entediante que se coloca nas paredes. prefiro falar sobre coisas concretas. sobre a origem dos marcos da nossa existência e, da minha veia sempre aberta, para fluires junto do meu sangue.


Luís-Carlos Mendes
é tão triste a viagem que deixa para trás um rasto de consolo. pai. mãe. mulher. rostos completos e uniformes. o que significa a ausência de todas as coisas? a obstinação de um feto como um esqueleto segregado. caos. fugas. perdas inesperadas. morte. lutos por serem processados? ainda sou do tempo em que as mulheres curandeiras se abraçavam na clareira de um gesto. sabes, os meus olhos resplandeciam nessa nitidez, e fechavam-se sem hesitações as minhas pálpebras cansadas. hoje, vivo de encontros e desencontros num espaço minado de medos metastásicos. desprotegido ao rés da terra, a fechar-me no molde de uma tristeza até ao fim.



Luís-Carlos Mendes
desfazer-me desse incómodo, e provar a minha existência onde emergem à superfície as coisas de quem era. também houve um dia em que nasci de parto natural, passaram-me as mãos pelo sangue coagulado da minha nascença, enquanto o frio se fechava na nudez do meu pequeno corpo ou na ansiedade em querer crescer depressa. porém, não são os dias de que não tenho memória aqueles que quero rememorar. faz-me falta o silêncio neste momento de última exigência, apaziguar a pobreza de espírito de certos homens, encarnar precocemente no corpo hábil de um cometa e, no gelo, fazer o meu processo de criogenização para uns anos mais tarde, quiçá, regressar.


Luís-Carlos Mendes
deixa amor, se por debaixo da terra existem raízes dos troncos das árvores.
se nas vésperas de uma manhã tudo estará ausente.
se as enxadas escavam terra para depositar rosas junto ao teu peito.
deixa amor, se no fundo da minha alma existe o grito perfeito,
só para poder chamar pelo teu nome


Luís-Carlos Mendes

em ti nada secou

há uma magia fulgente no teu grito de ternura. lá fora, na cidade profunda, o frio serve de pretexto para um corpo se agasalhar no vinco da tua intimidade. em ti nada secou. há partes da tua pele em que tudo ganhou um mar de afectos. uma transparência. um corpo ancorado no tempo em que a morte se extraviou. porque é de vida que se trata. uma pequena bússola e, o mundo ganha mais consistência, perante o nosso olhar cego de desejo. o utensílio perfeito para nos mantermos perto do âmago da felicidade.


Luís-Carlos Mendes

quinta-feira

não há nada a dizer/ libertamos o espírito e irrompemos pela treva da madrugada procurando a luz de outras galáxias girando em torno de nós próprios/ nenhum rosto nos ocupa/ nenhuma carne nos veste/ nós, somos aqueles que ignoramos a passagem rápida dos humanos que vieram para fazer história/ mas nunca nos enfeitamos/ estamos ocultos no raio de visão dos homens que falam de nós


Luís-Carlos Mendes

quarta-feira

caos

"(...) reconheces bem as vozes dos anjos ao som da mais bela das melopeias. vivemos num país livre, onde a justiça é feita por homens cobertos de razão, quando querem matar a saudade e o desejo. não tenho punhais para acabar com aquilo que escrevo, enquanto as palavras forem válidas. prefiro organizar todas as silabas até que os corpos distantes se tornem unos. depois, quando os anjos se calarem e tudo ruir na cidade profunda; recomeçarei a escrever, quiçá, a partir da palavra Caos (...)"


Luís-Carlos Mendes
recebi hoje o teu postal. e não recebi mais um postal. obrigado, és linda como o aço. tens força. és inteligente e para além de saberes estar na vida, sabes o que a mesma vale. isso para mim é tudo. bem, quase tudo! para ser tudo, terias de casar comigo. mas estás bem casada. tens três filhos lindos e sabes o que é o amor: esse bicho mau que se alastra por dentro de mim. tenho muitas mazelas à conta disso. sabes, o médico prescreveu-me terapêutica, e disse-me que era uma questão de tempo para que tudo se recompusesse. não ligo nada àquilo que ele me disse. não tomo os comprimidos e  limito-me a ver televisão. aquelas séries baratas onde aparecem personagens que matam mulheres simples como a susana, lembras-te? a susana do quinto andar? onde pára a susana? tenho saudades de ouvir os sinos da igreja de benfica às sete da madrugada, ver o pai dela sair para o emprego, e ir enfiar-me por debaixo dos lençóis da cama dela. onde pára a susana? soube há pouco tempo que o pai dela morreu. morreu de cirrose, coitado! coitado a merda. quis-me fazer a vida negra. assim como fez a vida negra à mãe dela. onde pára a mãe dela? a dona conceição que vendia bijutaria no mercado de benfica. onde os velhotes se entretinham a bater as cartas no banco do jardim, e comentavam a vida de quem era sério, e de quem não era. onde pára a minha vida? Será que os velhos alguma vez a comentaram?


Luís-Carlos Mendes
diziam que a mulher lavava os cabelos nas águas pálidas dos rios, enquanto os homens contavam histórias do quotidiano nas suas margens. é verdade. quando a tarde começou a deslizar, fiquei a saber que por ali passavam barquinhos de papel e preciosíssimos sinais que erravam por torrentes semelhantes. de repente, o céu ficou plúmbeo e dele começaram a chover peixes de todas as cores. as árvores começaram a ganhar folhagem. os pássaros entoavam cânticos ao som de harpas. eu vi. havia o cheiro da infância por todo o lado, e os homens começaram a dançar enquanto o amor secava o rio. uma catarse? não sei. mas sei que foi o essencial para que eu não ficasse indiferente àquele surto de afectos.


Luís-Carlos Mendes
talvez seja mais fácil esquecermos os sítios onde confluem os turbulentos rios e partirmos para um qualquer país estrangeiro. aqui, ainda habitam homens esquecidos por um deus que se extingue sem deixar rasto. é uma terra que serve de pretexto às cinzas, à diligência da morte que desconheço. aqui, não se escrevem poemas sobre o amor porque as palavras são já cadáveres desprendidos de tais actos. trata-se da minha dificuldade em aqui permanecer, sabes? estou na idade da experiência e algo me diz que a vida terá de seguir o seu curso para dar voz à minha existência. eu sei que não posso estar numa posição contrária ao óbvio, correndo riscos de destruir, agora, a minha força vital. porque é de força que se trata. é deste modo que se mantém as ligações sem precisar de um deus, ou de vários, se quisermos ir por um caminho mitologicamente saturado. lembra-te que não podes impor limites à tua vida, nem tampouco consentir que haja a mais ínfima possibilidade de imperfeição.


Luís-Carlos Mendes 

pavoneamo-nos

pavoneamo-nos, não há nada a esconder. é como se acabássemos de descobrir algo de extrema importância e o quiséssemos de pronto revelar. pavoneamo-nos, sem mistérios ou embaraços. na parte mais antiga de cada história há sempre o amor como um acessório feito à nossa medida. em abono da verdade, temos que nos render ao nosso mestre sentimento. pavoneamo-nos, sem reserva nem limites. é quase  como um processo aleatório que acaba sempre na uniformidade dos nossos ternos abraços. pavoneamo-nos por entre beijos e entregamo-nos à conquista sem nunca olhar para a tristeza do passado já morno. e deixamo-nos ficar ali, assim, não querendo partir, para poder ficar. pavoneamo-nos.


Luís-Carlos Mendes

terça-feira

se acaso pousares o olhar nas asas de um anjo, tudo ficará suspenso. quisera eu, erguer-me como se erguem as mãos dos homens em direcção ao céu. o fascínio dos astros irrompendo por uma noite escura, a beleza das cintilações, a entrada do tempo hasteando a existência invulgar de pequenos luxos capazes de lavar a alma. vede como a lua está alta e, na sua anca, se debruçam minúsculos anjos perante a permanência intacta de melancólicas cidades e homens mal iluminados. afasta-te dessa dilatada amargura e de todos os subúrbios cortantes manchados de sangue. não tenhas medo. o medo é um lugar escuro que morre na violência com que o destróis. apesar de tudo, ainda és detentora da tua lucidez, enquanto o coração bater no interior do teu próprio casulo.


Luís-Carlos Mendes


conheço muito bem o rosto com que pernoitas a frémita madrugada. os lugares estratégicos para fugir ao medo. as povoações cobertas de vivos e mortos. o caos. ainda sou do tempo em que os homens te confundiam com uma calêndula plantada na têmpora do mundo. estática, gemias enquanto tentavam arrancar-te da terra abandonada pelo teu deus. ao longe, enquanto  os sinos dobravam numa espécie de anunciação, o sangue espalhava-se no interior  do solo como uma preocupação atormentada. ao teu redor, já não restava nada, para além de uma serpente que rastejava para se emaranhar no teu caule.

Luís-Carlos Mendes

a esta hora há um livro fechado entre as tuas mãos. um livro de contos de fadas e cidades adormecidas. homens que vivem lá dentro com a impressão inspiradora da eternidade. por vezes deitam coisas vivas pela boca: mulheres sábias em pomares anacrónicos cobertas de uma metafisica pujante, ou crianças que foram dadas à terra como o melhor dos frutos. alguém diz, nesse livro, que o mundo é uma laranja cortada ao meio. uma metade destinada à doçura da tua boca. a outra, ao náufrago na essencialidade da sua exigência. nesse livro fechado ao pormenor, nem te apercebes da existência invulgar de pequenos luxos capazes de lavar a alma. não te apercebes da dimensão que tem o significado das palavras, enquanto vagueias pelo percurso do teu sono. não existe o mar. não existem deuses mitológicos à espera que lhes prestes a tua súplica, porque os caminhos estão saturados de toda a mitologia, e de homens presos à sua inocência.


a esta hora há um livro fechado nas tuas mãos. alui-se a cada gesto, a cada movimento que fazes. só as mulheres sábias, não dão por isso. estão demasiadamente ocupadas no recolher dos frutos gerados por outras mulheres que não sabem nada da vida. nada sabem de marujos naufragados nas praias da metafisica. nem tampouco do sumo da laranja que te escorre pelos lábios, enquanto os homens deitam coisas vivas pela boca.


não viste? já passou. não precisas de acordar.


Luís-Carlos Mendes

nada me importa

já não me importo se o meu frigorífico é branco ou azul. se a merda da paisagem quando me assomo à janela é sempre a mesma. se tu invés de te vestires de preto, como eu gosto, te vestes de amarelo. já nada me importa, para te ser sincero. é tudo uma merda e só me apetece fechar os olhos por já nada prestar. já não gosto dos livros do saramago nem do lobo antunes. para te dizer a verdade, do que eu gosto, é de levantar-te o braço esquerdo contra a parede, beijar-te, e desejar-te como se nunca te tivesse visto.


Luís-Carlos Mendes